Anna Liina Laitinen: A indústria tem ignorado os escaladores mais imersos para poder crescer



Num mundo onde a escalada se está a transformar num fenómeno cada vez mais massificado, é refrescante ouvir alguém que nos liga de volta às raízes da nossa modalidade.
Desta vez, falamos com a escaladora e route setter finlandesa Anna Liina Laitinen sobre o seu percurso, desde os primeiros impulsos de aventura na infância, até à criação de um rocódromo que pretende devolver aos escaladores mais devotos aquilo que a indústria dos ginásios comerciais tem roubado.
Depois de vários 8c+ de escalada desportiva no currículo, em 2023 passou a integrar o grupo de elite feminino, ao encadear o seu primeiro 9a - Escalatamàsters, em Perles, na Catalunha. Representou ainda a seleção Finlandesa em diversas Taças do Mundo e Campeonatos da Europa.
Com uma visão inspiradora e um compromisso genuíno com o desporto, ela leva-nos por trilhos de evolução pessoal e coletiva, abordando temas como a inclusão no route setting, o impacto da lesão na sua transição da competição para a rocha, e o desejo de devolver à comunidade aquilo que recebeu nos seus primeiros dias enquanto escaladora.
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(DR: Sami Laitinen)
Como é que te apaixonaste pela escalada e como foram os teus primeiros dias como escaladora?
Apaixonei-me pela ideia da escalada quando ainda estava no infantário. Naquela época, não era tão fácil começar a escalar como é hoje. Como a maioria das crianças, trepava tudo, e quando estava na floresta procurava sempre os sítios mais altos e desafiantes para conquistar, porque adorava desafios e era curiosa. Fazia muito snowboard e, quando fui pela primeira vez aos Alpes e vi o Matterhorn, algo despertou em mim e decidi que, assim que completasse 18 anos, me mudaria para os Alpes para começar a escalar. Já bem depois disso, lembro-me de ver uma parede de escalada numa exposição de ski, aqui na Finlândia, e inscrevi-me imediatamente num curso para iniciantes!
(DR: Anna Liina Laitinen)
Escalaste em muitos lugares diferentes no estrangeiro, mas dizes que escalar na Finlândia é diferente. Como é crescer enquanto escaladora no teu país?
Neste momento, é espetacular ser escalador na Finlândia, pelo menos nas principais cidades. Na capital temos quase 10 ginásios comerciais de escalada. A Finlândia oferece um bom bloco e algumas falésias de qualidade para escalada desportiva, mas a temporada é muito curta. Se quiseres evoluir como escalador de rocha, e ter uma maior variedade de escalada, tens de escalar no estrangeiro.
Posso dizer que gosto mesmo muito da comunidade de escalada finlandesa. Quando comecei a escalar recebi muita ajuda, as pessoas levaram-me a escalar ao ar livre, ensinaram-me e apoiaram-me em tudo o que precisava. À medida que o número de escaladores cresceu, surgiram muitas comunidades diferentes e dispersas. Ainda assim, a minha perceção é que a comunidade de escalada continua a ser muito acolhedora e calorosa.
No entanto, sinto a necessidade de retribuir, e é por isso que tenho feito muito trabalho de voluntariado ao treinar grupos de crianças desfavorecidas para que tenham a oportunidade de experimentar este desporto. Nos próximos meses, também vou abrir um ginásio de escalada com um conceito há muito esperado.
(DR: Render Project Konepaja)
Podes falar sobre esse conceito?
Para dar algum contexto, eu comecei a escalar há 17 anos, quando existia apenas um ginásio comercial em Helsínquia. Eu vinha de outra cidade, e tinha de apanhar três autocarros para lá chegar. Um ano depois, um pequeno ginásio de boulder abriu perto do centro da cidade, no mesmo edifício onde já existia uma cave privada de treino. Duas comunidades de escaladores - os old school e new school - interagiam, e a atmosfera acolhedora fazia do ginásio mais do que apenas um espaço de treino. Passávamos tempo, treinávamos, jogávamos bilhar, e fazíamos route setting juntos. Depois de uma cirurgia ao pé, cheguei a levar a minha PlayStation para lá, só para passar tempo com os meus amigos.
Com o crescimento do desporto, encontrar uma comunidade tornou-se desafiante, e é ainda mais difícil fazer parte de grupos mais pequenos. Hoje em dia, os ginásios de escalada são gigantes e densos, mas a maioria das pessoas vai lá apenas para fazer o seu treino diário. Sinto que a alma dos rocódromos tem estado um pouco perdida, e os escaladores dedicados têm sido ignorados. A indústria tem priorizado atrair novos escaladores, e os espaços de treino foram projetados a pensar neles. É por isso que estou a abrir um ginásio por amor à modalidade e à comunidade, e juntamente com os meus parceiros queremos criar instalações para aqueles que já estão imersos neste mundo.
Para conseguir diversificar o meu treino, sentia necessidade de me deslocar até à Noruega, porque havia muito poucas paredes extraprumadas ou boas spray walls em Helsínquia. Nos ginásios grandes, percebi que conseguia treinar com muito pouco, usando apenas uma pequena parte daquele espaço imenso. Já sabia há muito tempo que queria abrir o meu próprio ginásio, e recentemente percebi que é o momento perfeito.
Os meus parceiros neste projeto são escaladores experientes como Nalle Hukkataival, Ville Kurru, Peter Hammer, ex-CEO da Kiipeilyareena , equipadores, um carpinteiro e Toni Rantanen, DJ e fundador do prestigiado festival FLOW. O nosso espaço terá 750 metros quadrados, é pequeno mas eficiente, e será um local para encontrar amigos, treinar e passar o tempo livre. A localização e a atmosfera são verdadeiramente mágicas, mesmo no coração cultural de Helsínquia, dentro de um edifício histórico de fabrico de comboios.
(DR: Andy Wickström)
És route setter profissional e tiveste a oportunidade de competir ao nível mundial. Achas que as mulheres têm espaço suficiente como route setters nos rocódromos e nas competições oficiais?
Gostaria de ver mais mulheres a equipar. Talvez não pareça uma opção natural ou viável dentro da cultura feminina da escalada comparado com outros papéis nos rocódromos. Além disso, é extremamente difícil entrar na profissão de route setter - pelo menos na Finlândia - e não existe propriamente uma formação estruturada para isso. No entanto, espero que aqueles que são escolhidos para definir blocos ou vias sejam motivados, empenhados e tragam diferentes forças e tipos de corpos, independentemente do género. Também espero não ser escolhida para um trabalho apenas por ser mulher. Por outro lado, um aspeto positivo de existirem quotas femininas é o facto de inspirarem raparigas e mulheres a considerar esta área como opção.
Existem menos mulheres em equipas de equipadores em comparação com os homens em todos os países. Não sei bem por que há menos interesse entre as mulheres. Uma razão pode ser o preconceito de quem contrata. Muitas vezes, as mulheres são vistas como fisicamente mais fracas, o que pode influenciar a eficiência nos testes e na definição dos blocos. Quanto mais pessoas puderem testar os problemas, melhor. O route setting é como a escalada – embora seja físico, também é altamente criativo. Uma equipa diversificada, forte e com boa comunicação funciona bem, independentemente do género.
(DR: Ewa Strömberg)
As qualidades em que as mulheres escaladoras costumam sobressair podem trazer novos aspetos ao route setting. Na Califórnia, participei em alguns festivais de route setting femininos onde criámos problemas de competição em equipa. Criámos um conjunto diversificado de blocos, e o trabalho em equipa, a colaboração e a comunicação foram essenciais no processo. Além disso, apoiamo-nos mutuamente nas tarefas mais duras.
Há estereótipos fortes sobre o route setting feminino. Por exemplo, esperavam que eu criasse problemas cheios de pequenas presas e movimentos curtos, mas rapidamente disseram-me que, na verdade, estava a criar os problemas mais morfológicos. Isto acontece muitas vezes porque, inconscientemente, acabo por definir as minhas próprias fraqueza: sou curiosa em relação aos movimentos e ao tipo de presas que não são o meu ponto forte. Hoje em dia sou muito mais versátil, mas quando crio problemas difíceis, ainda tendo a confiar mais nos meus pontos fortes.
(DR: Emma Isakow)
Como é que a escalada em rocha te levou a deixar as competições para trás?
Sofri uma lesão grave no punho enquanto treinava para o campeonato do mundo. Devido a uma hemorragia interna no osso, o meu punho esteve à beira de gangrena e corri o risco de fazer uma cirurgia de fusão. Felizmente, a situação acabou por estabilizar, mas tive de escolher entre competir e ir para a rocha. Como a minha lesão tem risco de recorrência, a decisão foi fácil, uma vez que quero escalar até não conseguir mais!
(DR: Jan Novak)
Sentiste de perto, por diversas vezes, o stress mental provocado pelas lesões. Podes contar como ultrapassaste isso e continuaste a quebrar os teus limites?
Para acelerar o processo, pedi vários conselhos a especialistas que se focam no lado mental da escalada. Mesmo as dicas mais pequenas da Hazel Findlay foram extremamente úteis, assim como o que aprendi ao ouvir os podcasts em que ela foi convidada.
Uma boa forma de encarar isto é comparar o treino mental com a recuperação de uma lesão num dedo. Se uma polia estiver rompida ou ainda em recuperação, não vais direto para a campus board - em vez disso, aumentas gradualmente a carga sobre o dedo. Por isso, não nos podemos sentir frustrados se não conseguirmos lidar com o medo em highballs ou runouts tão bem como antes. “Baby steps!”
Quais são os teus próximos projetos ou objetivos a curto prazo?
Neste momento, estou à procura de alguns projetos ao ar livre na Finlândia, uma vez que o ginásio e questões familiares me mantêm por cá. No entanto, estou a planear uma pequena viagem para escalar pela Europa em maio, mesmo antes de começarmos a equipar no Project Konepaja. Estou mesmo muito entusiasmada!
(DR: Ville Kurru)
Créditos Adicionais: Foto de Cabeçalho - Colette McInerney
Agradecimentos:
Anna Liina Laitinen, pelo conteúdo fotográfico dispensado para este artigo.