De Trás-os-Montes para os EUA: a história do homem que colocou Red River Gorge no mapa da escalada mundial
Foi por acidente que me deparei com a história da Miguel’s Pizza. Como qualquer fanático, quando não estou pendurado, sou um ávido consumidor de conteúdo sobre escalada e montanha. E foi num desses momentos, mergulhado no documentário "Stone Locals", da Patagonia Films, que ouvi pela primeira vez o nome desta pizzaria que, viria a perceber, carrega um legado digno de uma longa-metragem. Movido pela curiosidade provocada pela sonoridade do nome do proprietário, comecei a investigar as origens da Miguel’s Pizza que posteriormente me motivou a escrever esta história. Não se tratando de uma epopeia, esta é uma história curiosa que merece ser conhecida por cá, sobretudo neste momento, em que a comunidade de escalada está em pleno crescimento.
Filho de Dario e Maria, Miguel Ventura viu a luz pela primeira vez na aldeia transmontana de Maçores, em Torre de Moncorvo, no início da década de 1950. A produção de queijo, moagem de cereais e a venda de pão não eram negócios rentáveis no interior do país, pelo que o casal acabou por emigrar para o Connecticut, nos Estados Unidos da América, quando Miguel tinha apenas sete anos. A família fixou-se na cidade industrial de Waterbury, mais concretamente, num gueto, como descreve Miguel, em conversa com Kris Hampton, em 2016. Quando inicialmente tinha dificuldades com a língua, a professora colocava-o a desenhar e a pintar no fundo da sala. “A arte mostrou-me uma saída e um caminho”, recorda Miguel no The Power Company - Climbing Podcast. Mais tarde começou a fazer gravuras em metal, a pintar murais e a trabalhar num estúdio especializado em sinalética visual. Era um artista visual nato, o que lhe permitiu ser aceite na Rhode Island School of Design, no entanto, por motivos financeiros, foi obrigado a recusar. Em vez disso, juntamente com o seu amigo Neville Pohl, carregou uma van com obras de arte e partiu em viagem numa jornada pela Califórnia onde desfrutou das noites do deserto.
(Sasha DiGiulian - Red River Gorge 2016 | Foto: François Lebeau)
Aos 25 anos, de volta ao Connecticut, cruzou-se com Susan, com quem casou dois anos mais tarde. Nos primeiros meses depois de casar, atendeu uma chamada - o seu amigo Pohl queria vender alguns terrenos perdidos na parte montanhosa do Kentucky. Miguel, em parte movido pelas recordações de miúdo, comprou o terreno que ele próprio batizou de “Andorra”. A Andorra americana estava localizada naquilo que hoje é conhecido como canhão de Red River Gorge (RRG).
“Eu senti um choque cultural, estava com saudades de casa e grávida” referiu Susan. Antes do seu primeiro filho Dario nascer, o casal renovou um barraco onde anteriormente um comerciante de Cincinnati vendia lembranças. Miguel tinha esculpido uma porta de cores vivas para um cliente que à última da hora mudou de ideias por algo mais tradicional, e resolveu usá-la na remodelação. Daqui nasceu a The Rainbow Door, uma gelataria. Se a história acabasse aqui seria claramente um bom argumento para um filme independente de câmara propositadamente tremida, mas provavelmente não interessante o suficiente para justificar a minha obsessão, nem o assalto impiedoso ao vosso tempo.
(Acampamento Miguel’s Pizza - Red River Gorge | Foto: François Lebeau)
A vida era dura no canhão. A zona de Slade, Kentucky, era conhecida pela pobreza e falta de recursos, que só a muito custo lá chegavam. No livro The Other America (1962), de Michael Harrington, o autor refere: “A ironia é profunda. Tudo o que transforma uma paisagem num idílio para o viajante urbano, conspira para reprimir a população local. Essa sofre nas mãos da beleza.” Os rendimentos não eram suficientes e Miguel começou a cultivar no seu terreno e a criar cabras das quais se servia de leite, queijo e carne para ajudar a alimentar a família que foi crescendo. Red River já tinha história escrita na escalada. Nos anos ‘70, nomes como Tom Souders, Larry Day, Ed Pearsall, entre outros, tinham desenvolvido a área abrindo centenas de vias de autoproteção. Depois de alguns guias publicados, o vale atraiu ainda mais escaladores, entre eles Porter Jarrard, um dos pioneiros na implantação da escalada desportiva nos EUA. Porter e um outro escalador, Martin Hackworth, eram clientes regulares de Miguel, que apesar de reservado, acabou por travar amizade com ambos. Porter e Hackworth acreditavam que o estabelecimento tinha condições para crescer e tornar-se algo maior que apoiasse a comunidade que apertava no Red. Porter queria material para começar a equipar as vias e Martin achava que a The Rainbow Door deveria começar a vender todo o tipo de material de outdoor. “Uma vez deixei-lhe uma nota em papel na janela - Quero Equipar Vias! Quero Material! – até ao dia de hoje nunca tive uma resposta”, referiu Porter. “Ele era reservado mas era muito bom para nós”. Miguel ampliou o espaço e com a ajuda de Martin começou a vender equipamento um ano após a porta colorida ser colocada no local em que ainda hoje range.
(Red River Gorge 2016 | Foto: François Lebeau)
O canhão atraiu cada vez mais escaladores que equipavam e escalavam temporadas a fio, e o filho de moleiros decidiu começar a produzir pão para os alimentar. O barraco que tinha quatro lugares de estacionamento e vendia apenas gelados, não tinha à época espaço para acolher as necessidades dos rock junkies que por ali apareciam. Porter e alguns outros escaladores ajudaram na ampliação do espaço. “Eu comecei a aumentar um espaço que tínhamos por baixo do restaurante e o Porter quando descia, depois de escalar o dia todo, dava-me conselhos sobre como proteger a estrutura e as fundações. Foi impecável tê-lo por perto”, afirmou Miguel. Em ‘86 o nome do negócio mudou de The Rainbow Door para Miguel’s Pizza. Era um espaço que acolhia dirtbags à procura de aventura, onde podiam tomar café pela manhã, aproveitar aquelas que seriam as primeiras pizzas feitas por Miguel durante o dia e celebrar ao som de batuques pela noite dentro. “Comprem as minhas pizzas ou vou ter de comer as minhas cabras”, dizia Miguel nos primeiros tempos, quando ainda estava a tentar fazer com que o negócio funcionasse. Mas as vias que Porter equipava e encadeava começaram a correr o mundo. O ‘pizza man’ começou a ter que acordar às quatro da manhã para tratar da massa e conseguir alimentar os hippies, com leggings coloridas sujas de magnésio, que acorriam ao espaço. Algumas das vias equipadas por Porter Jarrard são dedicadas à família Ventura. No setor “Military Wall” é possível escalar “Sunshine and the Moonbeam”, batizada em nome de Dario e da sua irmã Sarah, e no Left Flank encontra-se a “Mercy the Huff”, assim chamada em homenagem à expressão que Miguel usava ao entrar na sala de refeições quando tinha escaladores a fumar canhões.
(Uma noite junto à Miguel’s Pizza - Red River Gorge | Foto: François Lebeau)
No The Power Company – Climbing Podcast, Miguel conta: “Quando era jovem nunca soube o que dizer quando me perguntavam o que fazia. Pensava ser artista mas sempre tive questões sobre a egocentricidade dessa palavra. Então, um dia, estava a fazer um desenho, um boneco a vestir um uniforme para ir trabalhar e pensei – um artista a vestir o seu uniforme. Tu não precisas de uniforme para seres alguém; só precisas de ti próprio” e acrescenta “foi o que fiz, atirei esse uniforme fora e tornei-me no que realmente sou hoje: um ‘pizza man’.” O negócio abrandou em ‘93, quando o National Forest Service proibiu as vias equipadas na zona norte do RRG, mas um par de anos mais tarde, ainda antes da gestão do parque revogar a decisão, Chris Snyder descobriu aquilo que hoje é conhecido por “The Motherlode” - o paraíso do extraprumo com setores épicos adjacentes como o “The Chocolate Factory”. No início do novo milénio Red River Gorge era considerado por muitos o melhor local de escalada desportiva em todo o continente americano. Quando questionado sobre a sua relação próxima com a comunidade de escaladores, Miguel responde: “Escaladores, ainda que hoje estudem e tenham empregos, se continuam a escalar é porque têm uma chama dentro de si. Algo que aspira por aventura. Eu sempre me senti assim, alguém que explora e quer criar algo a partir do nada que é um pouco o que eles fazem ali.”
(Massa em preparação | Foto: François Lebeau)
Toda a envolvente teve um impacto profundo no seu filho mais velho. Dario Ventura cresceu integrado naquela comunidade de escaladores. Viu os atletas que faziam as capas das revistas projetarem o que de mais difícil se escalava à época. Ele próprio escala e equipa, e teve oportunidade de ver as suas vias, como a “Witness the Citrus”, serem encadeadas por nomes que todos nós conhecemos hoje como Daniel Woods e Sasha DiGiulian. Quando Kris Hampton referiu que todo o trabalho que Miguel fez por Red River Gorge acabou por indiretamente educar Dario e os seu irmãos, Miguel reflete “Na vida há dois tipos de pessoas: os que dão e os que tiram, e tu tens de perceber, como pessoa, quem queres que te influencie. Tem de haver um bom equilíbrio e foi isso que lhes tentei dar e ensinar”.
(Dario e Miguel à porta da Miguel’s Pizza - Red River Gorge 2016 | Foto: François Lebeau)
Na mesma conversa, Hampton confessa: “quando vasculho as memórias do período em que comecei a escalar no Red, devia ter uns 19 anos, lembro-me essencialmente do tempo que passei no Miguel’s Pizza com amigos, das festas no estacionamento ou de ficar a dormir no acampamento que o Miguel nos cedia por uma quantia simbólica.” Passados 40 anos da inauguração da Miguel’s Pizza, Red River Gorge é considerado por muitos uma Meca da escalada e recebe anualmente cerca de oito mil escaladores de todo o mundo. O espaço da pizzaria foi adaptado e expandido para poder acolher mais clientes e atualmente serve cerca de 200 refeições por noite. Miguel e o seu filho, que agora assume o controlo do negócio, construíram infraestruturas ao longo dos anos para que os escaladores possam dormir em pequenas cabines. Para os que preferem acampar, também foi readaptado um espaço com estruturas de apoio como casas de banho e chuveiro. As t-shirts vendidas, com o logotipo goofy da pizzaria, são vestidas por escaladores em Kalymnos e em Magic Wood. Estima-se que o impacto económico da escalada em RRG ronde os 3.6 milhões de dólares anuais nos seis principais territórios circundantes.
(Daniel Woods a descansar em Motherlode - Red River Gorge 2012 | Foto: François Lebeau)
Os mais próximos de Miguel dizem que a sua humildade, comportamento tranquilo e tolerância de monge para praticamente qualquer coisa, tornam-no um personagem misterioso. Atualmente, em Red River Gorge, correm mitos que Miguel já morreu - ou até que nunca existiu -, no entanto é ele quem ainda faz a massa das pizzas.
Agradecimentos:
François Lebeau, pelo conteúdo fotográfico dispensado para o artigo.
Kris Hampton, pela informação providenciada.
Billy Simek, pela disponibilidade para facilitar o contacto com Dario Ventura.