FILIPA DIONÍSIO: ‘O I.P.O. e a ala pediátrica de qualquer hospital deviam ter uma parede de escalada’
A determinação de Filipa Dionísio já resultou em duas paredes de escalada: uma no Centro de Medicina de Reabilitação em Alcoitão, onde trabalha, e outra numa escola de ensino básico na aldeia de Memo, em Timor-Leste. A escaladora, de 45 anos e natural de Sintra, é uma apaixonada pela modalidade e, enquanto médica de reabilitação, acredita no potencial da escalada para mudar e melhorar vidas. Quando não está com os seus pacientes, Filipa gosta de se entregar ao sossego das montanhas.
Desde o mês passado que há uma parede de escalada em Timor-Leste, graças a ti. De onde é que veio essa vontade?
Há um projeto que eu sigo, que se chama Climbing for a Reason, na Tanzânia. Trata-se de um núcleo de escaladores chilenos, que criaram um projeto de escalada num orfanato. Eles montaram uma espécie de spraywall em madeira, mas a Tanzânia tem uma série de boulders em rocha, portanto eles levam os miúdos tanto à spraywall, como a esses boulders. Aquilo tem um impacto muito importante porque é num orfanato de crianças abandonadas pela família, que foram ali acolhidas. E eu acredito que a escalada tem um grande impacto a todos os níveis, mais neste caso, em particular. Quando eu fui convidada para ir a Timor, pensei que era giro fazer algo assim. Perguntei quais eram as maiores necessidades que lá havia, até para saber o que eu poderia levar daqui que os fosse beneficiar, e pensei que era giro criar um projeto de escalada. Até porque me disseram que em termos desportivos não havia quase nada.
(Fotografia: DR)
Conta-nos como foi esse processo.
Pensei num projeto outdoor, mas não ia ser grande ideia por causa do clima - muito quente ou muito chuvoso. Então, falaram-me de uma capela. Depois comecei a pensar nas presas, e contactei a Yupik, para ver se fazíamos uma campanha de recolha de presas. O João Santos [funcionário da Yupik] foi impecável, e desenvolveu uma campanha. Conseguimos umas 130 presas, de pessoas que tinham muros em casa e que amavelmente as cederam. Mas tive de fazer uma seleção, e acabei por levar 75 presas comigo. Foi muito engraçado porque nos controlos que fiz durante a viagem tinha sempre de abrir a mala, toda a gente queria ver o que é que estava lá dentro, e perguntavam-me se ia vender aquilo para o mercado. Quando eu cheguei a Timor fui ver onde era a capela, mas estava a cair. Comecei à procura de outro sítio e havia uma escola que estava em construção. Era uma espécie de escola social, com 300 crianças. Pensei que seria o sítio ideal para ter um projeto de escalada. Falei com os responsáveis e acharam logo boa ideia. Comecei a ver como é que ia fazer a estrutura, e como ainda havia lá restos dos materiais que tinham sido usados na construção, usei tudo aquilo que pude. Lixamos a madeira da parede para dar rugosidade, e pintou-se para ganhar um bocadinho mais de aderência. Foi giro porque tinha chegado um grupo de filipinos que iam fazer a pintura exterior da escola, e eles nunca tinham visto uma coisa daquelas. Chegaram lá e perguntaram “o que é isto?”, e no fim do dia de trabalho, eles também iam escalar. Juntou-se ali uma comunidade de escalada em que primeiro estavam os miúdos, e depois eles.
Estamos a falar de miúdos com que idades?
Da escola primária, portanto, desde os pequeninos, com 5 ou 6 anos, até aos outros meninos que têm 10 anos. A partir daí eles já têm outras escolas.
E a parede é para ser usada em contexto de aula ou lazer?
Ambos. Quem ficou responsável por aquele projeto foi a Octávia, uma jovem de 20 anos, órfã, que dá aulas naquela escola. A Octávia é uma jovem super dinâmica, e foi a ela que eu tentei ensinar o máximo possível de escalada, porque ela mostrou-se logo muito interessada. Acredito que vai dinamizar aquilo muito bem.
Achas que os miúdos podem interessar-se realmente na escalada?
Acho. Por um lado, há ali miúdos com muito jeito, porque já sobem às árvores para ir buscar as mangas. Têm outra destreza e agilidade. Escalam descalços e tudo. E mesmo adultos... Havia lá um rapaz que trabalhava nas obras da escola e tinha um movimento espetacular. Há pessoas que têm isto de forma inata, e podiam ter um futuro brilhante na escalada. Possivelmente, isso não vai acontecer porque aquilo é Timor, e as condições e os recursos são escassos. Outro aspeto importante para os miúdos é a questão da resolução de problemas da escalada, da memorização, que pode contribuir muito para melhorar a aprendizagem e vários aspetos cognitivos.
(Fotografia: DR)
Mas este desafio só aconteceu porque tu própria fazes escalada, já há uns anos.
Desde os 29 anos. A minha grande paixão é a montanha. Foi nesse ano que fiz o meu primeiro trekking em autonomia, o Tour du Mont Blanc, que é a travessia dos alpes franceses, italianos e suíços. Lembro-me de na altura chegar a Chamonix e ver uma data de gente a escalar e de pensar que aquilo devia ser espetacular. Quando regressei dessa viagem, inscrevi-me no curso de escalada da Desnível.
E onde é que gostas de escalar?
Eu tenho feito várias viagens de escalada. Estive na Sicília e em Maiorca. Antes de ir para Timor, parei em Bali e estive lá a escalar, portanto as minhas viagens têm andado a incluir sempre um bocadinho de escalada. Aqui na zona costumo treinar no Altíssimo, no Vertigo, e ando aqui nestas zonas de Sintra, da Guia, de Montejunto. Mas sempre que posso ir para fora, vou.
(Fotografia: DR)
Vais atrás de vias ou blocos?
Vias. Boulder para mim é só para treino no rocódromo, porque eu não sou muito daqueles calhaus. Aquilo não é para mim. Já fiz escalada clássica mas não tenho conhecimentos suficientes, portanto é sobretudo desportiva.
Falaste do teu primeiro trekking em autonomia aos 29 anos. O que é que te fascina neste tipo de atividades?
A liberdade. Tudo o que é liberdade e ficar fora da civilização é aquilo que me preenche. Somos nós e a Natureza, é do mais puro que existe. É assim que eu consigo carregar a minha bateria.
Porquê?
Creio que a sociedade hoje em dia é muito egoísta. As pessoas olham muito para o seu umbigo, valorizam aquilo que é supérfluo e não o que é essencial. Quando estou na Natureza, na montanha… o ar é puro, o ambiente é tranquilo, há pouco ruído. O que ouves são os sons daquela zona, daquele ambiente onde estás envolvida. Não é que eu me queira isolar, mas para mim esses momentos são importantes. Ando um bocadinho desiludida com a humanidade, tem havido uma série de acontecimentos que eu nunca pensei viver, como uma pandemia. Nunca pensei que chegássemos a este ponto de guerras, e isso choca-me no sentido em que parece que não há evolução humana, parece que andamos a regredir. Por um lado, há uma grande evolução em termos de tecnologia, cada vez é melhor e faz mais, mas começamos a perder as nossas faculdades, o nosso estímulo cognitivo. Temos que evoluir, seja fisicamente, seja cognitivamente. Estamos a tornar-nos demasiado dependentes da tecnologia, porque deixamos de pensar por nós, deixamos que a máquina faça. Por outro lado, temos os mesmos comportamentos que tínhamos há uns anos, com este âmbito de guerra e de poderes. Este ambiente prejudica-me, e quando eu posso, eu fujo. É na montanha e na escalada que eu encontro a minha paz e sossego.
Esse hobby já te levou a que países?
Muitos, já escalei muita montanha à volta do mundo. Eu já fiz Alpes, Pirinéus, Dolomitas, Himalaias.
(Fotografia: DR)
Voltando a paredes de escalada… Antes da de Timor-Leste, já tinhas impulsionado a construção de uma outra no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão. Quem são os seus utilizadores?
Nós temos pacientes com diversas doenças e diversos tipos de deficiência. No caso de AVC, os doentes podem apresentar hemiparesia (diminuição da força no hemicorpo afectado) ou tetraparesia (diminuição da força nos quatro membros), depende do território da artéria atingida. Também temos muitos casos de paraplegia - só usam os membros superiores, as pernas não têm qualquer movimento -, como temos as ataxias, que são desordens do cerebelo, e têm muitos desequilíbrios e tremores. Têm a marcha de uma base muito alargada para conseguirem ter mais equilíbrio, muitas vezes têm de se deslocar de cadeira de rodas pelo risco de queda que apresentam, e depois temos um outro conjunto de patologias neurológicas, como os casos de Guillain-Barré com grande comprometimento na marcha, e que muitas vezes têm de usar bastões ou mesmo a cadeira de rodas. E pessoas amputadas, também, seja do membro superior ou do membro inferior. Ou seja, há um grande espetro de doenças.
E como escalam?
Em top-rope. Estão sempre presos pela corda, para garantirmos a segurança deles.
É um desafio.
Quando eles veem a parede ficam um bocadinho assustados, o que é normal. Começam a medo, mas fixam a presa onde ficam, e no dia seguinte dizem “eu agora quero passar daquela”. E vão andando sempre, até chegarem ao topo. E eu posso dizer que grande parte deles chegou lá cima, uns demoraram mais tempo, outros menos, mas aquilo é um estímulo psicológico, e eles acabam por perceber que têm mais capacidades do que aquilo que pensam.
De que forma uma parede de escalada ajuda aqueles doentes?
Eles têm de estimular a preensão, desenvolver força, melhorar a flexibilidade, a coordenação motora e a agilidade. Há um conjunto de componentes que vão sendo ali trabalhadas, juntamente com o efeito psicológico, que é o de conseguir chegar ao teu objetivo, neste caso, ao topo da parede. Houve pessoas com AVCs que, de início, era muito difícil saírem do chão, mas, aos poucos, foram ganhando força, agilidade e coordenação motora. Mesmo depois da alta, já voltaram para continuar a escalar connosco. Já fazem as vias mais fáceis muito bem e são capazes de as repetir. As mais difíceis, que estão no extraprumo, não, porque exigem, em termos técnicos, outro tipo de abordagem, como rotações de anca. Mas tudo aquilo que é vertical, sem declive, eles já conseguem fazer. Nas crianças, com autismo, por exemplo, aquela dificuldade que elas têm do contacto ocular, a própria postura delas, o convívio com as restantes crianças, melhora. Elas tornam-se muito mais soltas, não têm problemas com o contacto ocular porque estão a olhar para uma parede, e não estão a olhar para nós. Deslocam-se muito bem. Outro aspeto curioso nas crianças é que há muitas que não conseguem distinguir a esquerda e a direita, e para os pais isso pode ser um problema. A verdade é que ali, com as cores das presas, nós dizemos para irem à amarela, e elas têm uma maior destreza e identificam bem o que é a esquerda e o que é direita. Tem sido muito interessante ver a forma como se soltam na parede. Muitas delas têm mais agilidade do que aquilo que se pensa, alcançam as presas de uma forma muito melhor, a própria forma como elas formam o triângulo de estabilidade na escalada melhora de dia para dia.
(Fotografia: DR)
Há algum episódio que te tenha marcado?
Há pouco tempo houve uma doente que tinha uma ataxia complicada, porque tremia imenso. O primeiro dia não correu bem, mas eu digo sempre que é normal, para eles não desistirem. Como tremem muito, às vezes até para agarrar a presa têm dificuldade. Mas à medida que vão subindo, vão agarrando com mais força e de forma mais precisa. E quando essa doente passou de metade da parede, dava a impressão de estar a libertar a raiva que estava dentro dela, porque tinha uma vida normal e acabou por ter uma doença degenerativa. A partir de metade da parede ela agarrava com mais força, parecia que agarrava com raiva, com vontade de lá chegar. E chegou mesmo lá [ao topo da parede]. Quando desceu, chorou com a emoção de sentir que conseguiu concretizar aquilo. Aquilo que ela conseguiu ali fazer, pode transpor para a vida dela. Este estímulo psicológico é muito importante.
Estes sucessos já evoluíram para lá do centro de reabilitação?
Normalmente, temos uma prova de escalada adaptada em Portugal, que é organizada pelo Clube de Escalada de Braga, e este ano houve um Master Ibérico que foi em Braga, portanto tivemos participantes de Portugal e também de Espanha. Eu levei um paciente amputado transfemoral, e ele ganhou a prova. Nunca tinha escalado na vida, começou a escalar connosco. E foi muito interessante ele ter lá ido, e eu tenho pena de não ter levado outros doentes, porque havia lá de tudo, desde pessoas com hemiparesia, invisuais - que são espetaculares, porque eles conseguem fazer aquilo que nós que vemos não conseguimos, que é lançarem-se e terem menos receio. E depois havia lá crianças e adultos, com diferentes tipos de patologias, paralisias cerebrais também. A equipa espanhola era muito unida e eu achei isso impressionante, a apoiarem-se sempre uns aos outros, havia ali aquele espírito da comunidade da escalada, que é muito importante. Foi notável. Estava lá também a Tânia Chaves, que é a referência em termos nacionais. Foi um evento muito giro, e trazermos uma medalha foi muito importante para nós.
Há mais sítios que podem beneficiar da presença de uma parede de escalada?
O I.P.O. [Instituto Português de Oncologia] e qualquer ala pediátrica de um hospital deviam ter uma parede de escalada. O estímulo psicológico ajuda no combate à doença. Isto é extremamente apelativo para crianças e adultos. Acredito que devia existir uma abordagem diferente. E a Medicina precisa de uma volta neste aspeto - estamos muito centrados e focados naquilo que é a medicação, quando há outros aspetos que são muito importantes. Outro aspeto são as doenças psiquiátricas. Portugal é dos países onde há maior número de pessoas com ansiedade e depressão, que tomam medicação há anos, mas que continuam deprimidas e ansiosas. A medicação não está a fazer absolutamente nada. Estas pessoas precisam de alargar os horizontes e contactar com outros ambientes. Acredito que a escalada pode ajudá-las a se tornarem mais fortes psicologicamente e, consequentemente, também fisicamente.
Que desejos tens para o futuro?
O facto de a escalada se ter tornado um desporto olímpico veio dar um outro impulso, mas espero que os paralímpicos também venham a ter escalada, para a escalada adaptada ganhar outra dinâmica.