JOÃO ÉVORA: ‘O routesetting é algo em evolução, que nunca vai ter um fim’
Começou a escalar ainda criança, com o pai, na Redinha. Hoje, com 26 anos, é um dos nomes mais relevantes no panorama do routesetting europeu. João Évora, o primeiro português a ocupar a função de chief routesetter numa prova internacional, falou connosco sobre a sua paixão pela criação de movimento, as diferenças entre equipar para fins comerciais ou em contexto de prova, o futuro do routesetting e as vias que ainda gostava de fechar
Como foi o teu primeiro contacto com a escalada?
Foi com o meu pai e uns amigos dele, na Senhora da Estrela, na Redinha. Escalámos as vias baixas do Bivaque do Caracol, fizemos um rappel, e apaixonei-me logo pela modalidade. Trouxe-me muita felicidade desde o primeiro dia. Lembro-me de escalarmos 3º graus, e de montarem uma via em que o início era mais delicado. E eu, com 6 ou 7 anos, queria escalar, mas começou a chover e disseram-me que não podia, que era perigoso. Mas fiquei logo com o bichinho.
Depois, voltei a ter contacto com a escalada quando entrei para o 4º ano, na Escola Básica de Soure. Eu queria entrar logo para o Núcleo de Escalada de Soure, mas era impossível, porque só podia a partir do 5º ano. Sei que agora se pode entrar logo no 1º ano, que o professor Alberto Cruz tem alunos e atletas muito jovens, com 6 ou 7 anos, o que é incrível. Quando entrei, no 5º ano, inscrevi-me no desporto escolar, e escolhi praticar escalada e badminton. Era uma tarde para a escalada e outra para outros desportos. Foi assim durante dois anos (5º e 6º ano). Tinha sempre duas atividades, por minha autorecreação. A partir do 7º ano foi só escalada. Comecei a fazer grandes amizade
Quando é que começaste a vislumbrar um futuro profissional na área?
No meu percurso de escalada, sempre fui muito motivado com competições e com a rocha. Nunca fiz grandes viagens de escalada, por motivos financeiros e de disponibilidade. Embora o motivo financeiro não seja grande desculpa, porque acaba por não se gastar muito dinheiro. Mas também é importante encontrarmos bons parceiros para fazer a viagem, encontrar um bom momento e um bom destino… Nessa altura, em que eu estava bastante motivado, via-me mais ligado à escalada como treinador. Ou a fazer o que o professor Alberto Cruz está a fazer, como dar aulas a crianças. Mas sempre pensei mais a nível de voluntariado, porque quando comecei não havia ginásios de escalada, rocódromos. Houve um pequenininho, do André Neres - o Boulder Área -, na altura em que eu comecei a escalar, e foi lá que tive a minha primeira competição de escalada. Era um rocódromo de garagem, e deve ter sido um dos primeiros a nível comercial. Sei que o primeiro foi o Alvaláxia, no Estádio de Alvalade, depois abriu o Boulder Área, e entre 2009, quando o Boulder Área fechou, e 2013, 2014 não houve nada. Então, pensei que isto da escalada não dava dinheiro e não dava para trabalhar, então o meu percurso foi mais escolar, de fazer uma licenciatura e de estar ligado à segunda área que eu gosto: a área da manutenção, da mecânica, da eletrónica, da eletricidade. É algo de que também gosto. Mas não, nunca pensei em fazer disto trabalho ou em só trabalhar nisto.
Como é que acaba por acontecer?
Pouco a pouco. Comecei a equipar em Soure e a ficar motivado. Acabava sempre por dizer “vai experimentar o bloco que equipei em Soure”. Equipava as competições dos atletas mais jovens. Na altura, quando era júnior/juvenil equipava para iniciados/infantis, depois passei um escalão à frente para ir para séniores. As competições de séniores eram sempre no dia seguinte, ou no dia anterior, às competições de jovens, e então eu equipava as competições deles e competia como sénior.
Houve então essa oportunidade de equipar o europeu [em Soure]. Nunca pensei que fosse possível trabalhar só disto. Sabia que noutros países, como em Espanha, França, Áustria, Polónia, era possível e havia equipadores profissionais. Mas a minha primeira experiência a equipar para escalada a nível comercial foi, talvez, em 2020, 2021, quando comecei a dedicar-me mais a isso. Fui ganhando algum dinheiro a equipar, e comecei a pensar que se calhar conseguia viver só disto. Também fui conhecendo pessoas que me foram dando oportunidades. E fui-me motivando bastante com as competições. O meu foco principal, hoje em dia, é equipar competições.
O que se aprende num curso de routesetting? Tens algum?
Aprende-se as bases: como usar uma aparafusadora, como tirar um parafuso partido da parede, a teoria básica dos blocos fáceis terem de ser acessíveis, o facto de um bloco difícil não poder ser perigoso, normas de segurança, o uso dos EPIs [equipamentos de proteção individual] necessários, etc. É sobretudo isso que se aprende nos cursos mais a nível comercial, comprimido em 2 ou 3 dias.
Eu fui aprendendo a fazer, a equipar, pouco a pouco, com amigos. Acho que é um bocadinho esse o processo, a partilha de experiência. Onde se aprende mais é mesmo na partilha de experiência com outros equipadores. A nível de competição é um bocadinho diferente, tem que se aprender a lidar e a gerir outras emoções, a pressão, um bloco ou uma via tem que funcionar bem para os atletas que temos.
Sei que para ganhares experiência equipaste várias vezes de forma gratuita.
Eu comecei a aprender equipando em Soure, no NES [Núcleo de Escalada de Soure]. Equipava também no Clube de Escalada da Figueira da Foz, no Paião. Equipei muito de forma gratuita para aprender, com pessoas sem muita experiência, e fomos crescendo juntos. Pagavam-me pouco para equipar meia dúzia de blocos e à medida que fui ganhando experiência deu para pedir mais dinheiro. Com a experiência, e com os anos que tenho, já posso pedir um valor que acho justo para o trabalho.
Em que ano é que começaste a equipa de forma profissional?
Eu diria que foi antes do primeiro Europeu que equipei, em 2017. Depois do Europeu, pensei “isto é incrível, quero criar movimento, explorar o que é que as presas me dão, o que é que consigo fazer com isso”. Na altura, lembro-me de que não tinha ninguém para testar os blocos ou as vias comigo, e perdia bastante tempo a tentar ajustar, para conseguir o movimento que pretendia. Depois, quando vinha alguém, e fazia de outra maneira, eu tentava perceber porque é que tinha feito assim, e ajustava até ficar melhor. Isto é algo que acontece muito, por isso é que eu considero o trabalho de equipar um bloco, ou uma via, um trabalho de equipa. Depois de 2017, motivei-me cada vez mais. Também houve a oportunidade de ir equipar uma prova oficial. A primeira vez que fui pago para equipar foi em 2016, no ATV [Académico Torres Vedras], depois, em 2017, equipei o primeiro Europeu, e depois equipei outra vez a prova do ATV.
E chegaste a trabalhar na tua área de formação?
Nunca trabalhei diretamente com a área da engenharia, mas já trabalhei como técnico de manutenção industrial, teste e manutenção de sistemas de janelas. Fiz outros trabalhos paralelos à escalada para conseguir sobreviver e conseguir alimentar aquilo que eu queria, que era escalar. Fiz manutenção florestal, implementação de percursos pedestres, servi às mesas [risos].
Atualmente, trabalhas a tempo inteiro na escalada?
Sim, estou a trabalhar no Climbing District, em Paris. Sou o responsável de route setting de um dos ginásios do grupo, mas trabalho sempre com outra pessoa, sejam freelancers ou equipadores da mesma companhia. E tenho trabalhos paralelos em competições.
E passaste por Espanha.
Sim, nos últimos dois anos, como trabalhador independente, em ginásios, como o Sputnik, Hangar4, Sharma e Gekko Aventura. Ficava duas semanas a viver lá, numa carrinha que transformei em auto-vivenda, a equipar quase todos os dias. Outras vezes ficava três e voltava uma. Foi cerca de um ano e meio a fazer estas viagens entre Portugal e Espanha.
Como é que surge este trabalho no Climbing District?
Foi um convite. Na altura, vim a França visitar uns amigos, e tive a oportunidade de equipar duas vezes no Climbing District. Entretanto, abriram um outro ginásio e precisavam de um equipador responsável, e como tinham gostado do meu trabalho, fizeram-me esse convite.
Já equipaste várias provas, tanto nacionais como internacionais. Há alguma que te tenha marcado?
Todas as provas e competições marcam por algum motivo. Ou por ser uma competição muito importante a nível de atletas ou ao nível da equipa. Aquilo que me marca mais é a semana com a família que se cria durante esse período de route setting. Vivemos, temporariamente, todos no mesmo sítio, e são momentos que marcam.
Acho que a prova que equipei que mais me marcou, foi talvez a Copa do Mundo, em Briançon. Estivemos duas semanas a viver num chalé de montanha juntos. Houve um pré-route setting e depois houve uma semana de pausa, porque houve uma prova do camp francês no mesmo muro. Durante essa semana fomos escalar na rocha, exploramos a zona de Briançon e foi incrível. Gostei bastante dessa prova. Competiram os atletas mais fortes para quem eu alguma vez equipei. Os campeonatos da europa de jovens também são incríveis. São provas intensas. É acordar, tomar o pequeno almoço e pegar numa aparafusadora ou aquecer diretamente e experimentar, testar, testar, escalar.
Sentes mais pressão quando equipas provas com grande visibilidade?
Em todas as competições sentimos pressão, porque queremos dar sempre o nosso melhor, que as coisas corram como pensamos, e que o atleta saia do bloco, ou da via, feliz e que sinta que deu o seu máximo. Também sentimos pressão porque, por vezes, queremos que em algum bloco, haja, pelo menos, três tops. E quando há vários atletas que não fazem, pensamos que vai ser um desastre. Mas depois vem o último e faz alguma coisa, e é uma explosão de alegria. Sentimos pressão em qualquer competição, sejam os melhores atletas ou os piores atletas. Nós queremos que a competição seja a melhor. Dou o meu máximo quer seja um campeonato regional, uma prova amadora ou um campeonato do mundo. Também podemos sentir pressão por ser transmitido em streaming, porque não queremos que haja erros a nível profissional.
São essas falhas o pior que pode acontecer enquanto route setter?
Sim, sim. Ou movimentos que tínhamos pensado, e onde gastamos muita energia no movimento, sentirmos que não funcionam, ou que afinal dava para fazer de outra maneira. Há muitos fatores com que se tem que conseguir jogar nas competições e é desafiante. Em [routesetting] comercial é diferente. Se houver vários métodos para fazer a mesma coisa, para mim não é muito importante. Se for um bloco mais duro, tentamos que seja feito só de uma maneira. E que haja também igualdade de tamanhos, que uma pessoa mais pequenina consiga fazer o bloco da mesma maneira que uma pessoa de dois metros. Pensamos bastante nisso a nível comercial, e de competição. No meu ponto de vista, pensamos em mais fatores quando equipamos em competições do que quando equipamos em comercial.
Em route setting comercial, muitas vezes, temos de equipar oito ou dez blocos num dia, ou mais, e em competição não. Há mais tempo para gastar energia num bloco. Equipas três, no máximo. Depois tens outro dia só para os ajustar. Em comercial tem de se ser muito mais eficaz.
Ter pouco tempo disponível é o principal desafio do routesetting comercial?
Sim. Têm que ser coisas muito eficazes. Acho que isso é o que distingue um bom de um mau equipador comercial. Um bom route setter tem muitos recursos na sua cabeça, não precisa de ter muitas presas.
Qual é o teu estilo preferido?
Adoro placas. Os blocos físicos e de coordenação de mãos não são o meu ponto forte, mas adoro equipar esses blocos. Gosto de placas rápidas, coordenações de pernas. Fascina-me o movimento, aquele sentimento de que vai escorregar um pé a qualquer momento, e a confiança que é preciso ter. Gosto do lado mais técnico, de saber que não é só fazer força, e que algo pode acontecer.
Estás a referir-te ao que gostas de escalar ou ao que gostas de equipar?
As duas coisas. Como escalador e equipador. Cada equipador escolhe aquilo com que se dá bem, aquilo onde escala melhor. E vai ser mais eficaz nesse estilo porque vai conseguir perceber se o movimento está difícil ou fácil. Ou pode ser tão fácil para ele, que pode não perceber que afinal é difícil. Por exemplo, posso ser muito bom em blocos físicos, e posso não sentir essa diferença, não sentir que é um bloco extremamente físico que se calhar não vai funcionar ao nível comercial ou que já é uma dificuldade superior do que aquela que pretendemos. O difícil é conhecer bem os pontos fortes de cada pessoa.
Como é que um route setter faz a manutenção da criatividade?
Escalar, escalar, escalar. Criar coisas novas e tentar, fazer experiências. Ir a ginásios de escalada, escalar movimentos e blocos de outras pessoas. Viajar, ver vídeos de competições.
É importante estar com outros route setters?
Sim. Partilhar experiências, equipar com outras pessoas, com diferentes alturas. Isso faz-te ter uma visão diferente a nível de morfologia. A nível físico também é importante equipar com outras pessoas, que podem ser muito boas a fazer um movimento que não é o teu ponto forte. Tens que experimentar também outros blocos, e vais acabar por praticar também os blocos das outras pessoas. Eu posso pensar que este bloco é o melhor do mundo, mas depois vem um equipador e diz que dá para fazer de mil e uma maneiras, e eu tenho de perceber como o tornar melhor. Acho incrível essa partilha de conhecimento, enquanto manutenção da criatividade.
O que é para ti bom routesetting comercial?
Eu gosto de todo o tipo de escalada e de todos os blocos. Sinto que eu não olho muito para a parte estética. Há ginásios que apostam na parte estética, com presas e volumes grandes. A minha visão, a nível estético, é diferente, talvez por estar em Paris, e por haver um tipo de route setting muito específico. Não se gasta muito dinheiro em presas, o route setting é mais minimalista, a pensar em bons movimentos.
Por vezes, o routesetting pode estar muito bonito, mas quando escalo só utilizo a primeira e a última. E depois dizem-me que “enche a parede”. Eu retirava essas presas e criava um espaço mais limpo na parede. Há ginásios em Portugal, Espanha, Alemanha, não tanto em França, que põem uma presa no meio do bloco, que não é utilizada para nada, mas preenche um espaço vazio na parede, e dá a sensação de que há muitos blocos. Mas se o cliente não utilizar, vai questionar. Prefiro um espaço mais limpo, onde seja o escalador a preencher a parede, do que encher a parede com presas e o escalador não ter espaço para escalar. Também não gosto de tocar em presas de diferentes blocos, quando eles estão muito juntos. Acabo por me concentrar mais em não tocar na presa do que propriamente em sentir o feeling do bloco.
Quando entro num ginásio, desfruto de cada bloco. Mas se for um bloco muito físico, em que só se faz força e que seja “esquerda-direita”, isso é mau. Nota-se que os equipadores já estavam sem ideias ou cansados, mas tem sempre que conseguir tirar algo fora da caixa. Um bom routesetting é isso: haver uma combinação entre movimento e quem o vai escalar. Eu sinto-me bem num ginásio em que os movimentos sejam divertidos, não sejam extremamente duros. Ou blocos fáceis que têm um movimento extremamente duro e o resto fácil. Isso para mim não tem interesse. Gosto de um bloco que seja mantido, de começar e acabar com o mesmo sentimento. Também não gosto que sejam coisas básicas na zona final do bloco. Tem que haver sempre a mesma dificuldade e intensidade do início ao fim do bloco. Para mim, isso é um bom routesetting.
Quando estás a equipar tens limites ou dão-te liberdade criatividade total?
Há limites e cada ginásio tem regras diferentes. Há limites, como normas de segurança que obrigam a que parte final do bloco tenha que ser “esquerda-direita”, mesmo que seja o bloco mais duro. Se o ginásio quer, é assim que eu vou fazer, mesmo que não me identifique. Equiparia uma vez, e só voltaria quando mudassem de ideias.
No ginásio onde estou a equipar, não querem inícios sentados ou com os pés virados para cima. Isso é proibido, e eu também não gosto, nunca equipei um bloco assim. Começar deitado no chão, com os pés virados para cima e fazer só um movimento, para mim não tem interesse. Sei que os clientes adoram, mas acho que há outras coisas divertidas que se podem fazer. Mas não julgo quem equipa assim.
Aqui [em França], há muito a regra sobre as mãos terem de estar ao nível dos olhos, o que não faz grande sentido para os equipadores e mesmo para a pessoa que gere o route setting. No início, discuti sobre isso, mas agora faz sentido. Um bloco tem que ser confortável para começar. Não faz sentido ter um início super desconfortável e ir para uma posição confortável. A nível de limites, há coisas que nos blocos fáceis não se podem fazer, como tops dinâmicos e saltos, porque as pessoas não sabem cair e há mais riscos de lesões.
O que achas que é preciso fazer-se em Portugal para termos mais route setters com qualidade?
Haver pessoas motivadas para o fazer e para puxar a modalidade de forma voluntária. Nos últimos anos houve o problema relacionado com as federações - atualmente já está resolvido - e para mim, é um marco importante para a modalidade. Podemos começar a trabalhar a sério. E há muitas pessoas que fazem voluntariado, porque não há ainda apoios financeiros que permitam pagar o seu trabalho. Acho que para evoluirmos nesse ponto temos de ser profissionais. Se as pessoas estão a fazer o trabalho, têm de ser pagas por isso. Esse é o ponto fulcral da evolução da modalidade. As pessoas não podem trabalhar para o resto da vida de forma voluntária. Se houver apoio financeiro, ou outro apoio, as pessoas vão fazê-lo com outra energia.
Acredito também que as pessoas têm que ir para fora de Portugal, conhecer outros equipadores, escalar noutros países, noutros ginásios, fazer ligações com equipadores. Tentar equipar fora, mesmo que seja de forma gratuita. Eu próprio trabalhei muito de graça dentro e fora de Portugal. Fora de Portugal, e mesmo em competições, trabalhei e continuo a trabalhar de forma gratuita para ganhar experiência.
Atualmente, em Portugal, começa a haver bastantes equipadores, porque acham que isto é um trabalho fixe, bem pago e estão a meter umas presas na parede. Mas isso é a diferença de um bom para um mau profissional. Eu não trabalho pelo dinheiro, mas pelo gosto que tenho em meter essas tais presas na parede e a criação de movimento. Obviamente que o dinheiro é aquilo que me permite sobreviver, mas é um acréscimo ao trabalho. Quem equipa, tem mesmo de gostar do que faz, e não pode só achar que é um trabalho fixe. É como se fossemos os cozinheiros de um ginásio: sem o route setting o ginásio não funciona. Alguém põe as presas na parede, mas depois é o trabalho de equipa que faz com que o bloco funcione. É essa a mentalidade que os equipadores têm de ter. Não são rockstars, são equipadores. E não se podem encostar à sombra da bananeira, apenas a equipar e descurar o treino. Um equipador tem que treinar e manter-se em forma para conseguir equipar blocos.
Como é que olhas para o futuro das competições?
Acho que vai haver cada vez mais estilos nas competições. No que toca ao bloco, os movimentos dinâmicos foram criados para dar mais aleatoriedade às competições. Não só um bloco dinâmico ou uma competição dinâmica, mas já se estão a ver blocos extremamente físicos, para saber quem é o melhor atleta numa final.
Vai haver o bloco mais dinâmico que se possa equipar para se conseguir ver quem é o melhor atleta em dinâmicos, ou o bloco mais duro em placas. Quanto às placas, é delicado. Por vezes, só tens cinco minutos, e mesmo que tenhas o melhor atleta em placas, esse atleta pode não conseguir fazê-la, e isso acaba por ser um desastre. Por isso é que atualmente começa a haver placas elétricas, ou seja, um bloco com pés maus que obriga a fazer um movimento rápido e elétrico. Não quer dizer que seja dinâmico, mas que crie desafio e que a partir desse ponto, uma desconcentração ou uma escorregadela já cria um ranking.
Eu acho que esses blocos dinâmicos não vão desaparecer, e que vai haver cada vez mais estilos marcados, o que vai trazer mais dificuldade aos equipadores. E acho que no futuro os equipadores vão ter de ser tão fortes como os atletas. As competições vão-se manter neste registo que está a haver agora, cada vez mais marcado e mais coisas diferentes. No campeonato do mundo houve aquelas presas sem textura que foram uma novidade. Acho que vai haver cada vez mais coisas variadas, e as marcas de presas também estão loucas para criar coisas novas. Há muitos equipadores que fazem os shapes das presas porque querem ou têm uma ideia de uma presa inovadora, que vai revolucionar o mundo. Vai revolucionar se calhar a próxima competição e depois as empresas vão todas copiar isso e vai ser mais uma presa no mercado. É um mix, o route setting para mim não é uma coisa estagnada, é algo em evolução, que no meu ponto de vista nunca vai ter um fim.
A nível de dificuldade, as provas do campeonato do mundo e taça do mundo são muito marcadas. Por exemplo, sabemos que na Suíça, em Villars, é sempre new school, movimentos dinâmicos. No ano passado, criaram um 360 numa via, que foi uma coisa sobre a qual toda a gente falou. Nunca se tinha visto. Mas acho que o objetivo de uma via é ver a pessoa mais física, com mais capacidade de resistência, e que consegue fazer os movimentos e chegar ao top. Eu não gosto de uma via de dificuldade que tenha só movimentos dinâmicos e saltinhos, isso não vai trazer resistência a ninguém, nem vai dizer qual o atleta melhor em dificuldade. Acredito que as competições vão ser cada vez mais duras, e que vai haver um mix com movimentos dinâmicos. Mas não se pode correr o risco, como numa prova de bloco, de toda a gente cair no mesmo ponto. É um desastre, porque não há ranking.
Tens projetos na rocha?
Não tenho nenhum projeto para breve. Tenho várias vias que gostava de fazer, como a Ação Reacção (8c), nas Buracas do Casmilo, na Cova da Cornélia. É uma via com história, porque foi a via mais dura a ser escalada em Portugal, nessa altura. Gostava de ter algum tempo para me dedicar à rocha e conseguir fazer uma via ao meu limite. O que me traz mais felicidade a escalar em rocha, nem são as vias de grande dificuldade, é mesmo a sensação que a rocha me transmite. Mesmo escalar uma via de clássica, fácil, talvez um 6a, 6b, traz-me uma felicidade enorme. Uma via de largos é uma coisa incrível, aquela sensação e aquele medo miudinho de não saberes se o ponto vai aguentar, se te vai escorregar um pé, se a fadiga te vai fazer cair no próximo ponto.
Uma via com a qual eu sonho - e toda a gente - é a Bibliographie, em Céüse. É uma via mítica. Vivendo em França, talvez a experimente no futuro. Na Catalunha, há a La Rambla, a Era Vella, o Estado Crítico - o segundo 9a encadeado por um português, o André [Neres]; o primeiro foi encadeado pelo Leo [Leopoldo Faria]. Em Portugal, há o Peixe Porco, uma via que tenho muito interesse em fazer ou experimentar. Foi o primeiro marco de uma diferença na escalada em Portugal, uma dificuldade que nunca se tinha ouvido falar. Na altura, conheci o Leo quando ele estava a equipar em Soure, e ajudei-o quando era muito miúdo. Já tinha visto os vídeos dele no Peixe Porco e eu achava que super forte, um escalador à séria.
Para já, estou muito focado no routesetting e acho que não perdia um ano da minha vida para encadear uma via. É preciso dedicar tempo e acho que não estou disposto a isso atualmente. No futuro, espero estar.
Agradecimentos:
João Évora, pelo tempo e pelo conteúdo fotográfico dispensado para esta entrevista.
Ricardo "Macau" Alves, pela fotografia dispensada para o uso da capa desta entrevista.