TIAGO TORRINHA: ‘Gostaria de pisar todas as agulhas principais do Fitz Roy’
Para Tiago Torrinha, natural da Lousã, a escalada é o pretexto perfeito para embarcar numa jornada pelo desconhecido. Apaixonado pela Natureza desde que se lembra, Tiago abandonou o emprego como comissário de bordo, decidido a abraçar uma ocupação mais alinhada com aquilo que o preenche: o mundo natural. Ainda durante a pandemia foi para Espanha e tirou vários cursos que lhe permitiram tornar-se guia de montanha a tempo inteiro. Quando não está nas montanhas em trabalho, está nas montanhas em lazer.
O que é isso da escalada de aventura?
Para mim, a escalada de aventura engloba um certo desconhecimento de para onde se vai. Normalmente, está associada também, mas não só, a vias grandes e que estão algo remotas; a algum grau de incerteza quanto ao trajeto e ao nível de dificuldade; e quanto ao tipo de estilo que podes encontrar no percurso. Por outro lado, acho que a escalada de aventura está muito associada à questão de gestão do risco. Existem riscos que não são, muitas das vezes, óbvios e que vão ter de ser geridos ao longo da escalada. Quer seja do ponto de vista da escalada, por serem percursos pouco percorridos e saneados, ou por haver blocos soltos e fragmentados, quer seja por uma questão de meteorologia. Por estares muito remoto, de certa forma, a meteorologia também afeta, quer seja pela gestão de neve, como pelas possibilidades de avalanche. Em resumo, há para mim dois grandes fatores que contribuem para que a escalada seja de aventura: um, a questão da incerteza, do percurso e das dificuldades; e dois, a exposição ao risco e a necessária gestão e avaliação desse risco.
E quando é que te começas a interessar por escalada?
A escalada surge naturalmente. Quando era miúdo era um macaquinho. É curioso perguntares-me isso porque quando penso no meu “eu” de 6 anos que ia para o parque, não era para andar nos escorregas, mas pendurado nas estruturas, a saltar de um lado para o outro. Trepava árvores, muros… Sempre fui muito ativo durante a infância e a juventude. A escalada veio mais tarde. Pratiquei downhill durante muito tempo e aí tive um contacto muito forte com a Natureza e com a montanha, mas de um ponto de vista mais de competição. Mas sempre esteve no meu ideal essa cena da montanha, da Natureza, sítios remotos, fora da urbe. Não que eu não goste da cidade, mas é aí [na montanha] que me encontro, que encontro a minha essência. E quando eu estive a fazer um estágio em Ceuta - o meu estágio de final de curso de Turismo - conheci lá uma malta que ia para Marrocos. Arrancavam ao fim de semana de carro e iam Marrocos adentro para escalar. A minha primeira experiência foi com eles, em 2013. Foi em top-rope, mas senti que me encontrei.
(Fotografia: DR)
Como é que foi essa primeira experiência?
Quando conheci esta malta e comecei a ir para Marrocos com eles, era embarcar numa jornada. Foi essa ideia romântica da jornada que me trouxe onde estou agora. Foi aí que tudo nasceu. Aquela ideia de “vamos numa carrinha, de viagem, entramos montanha adentro, por estradas super precárias, montamos a tenda e estamos ali o fim de semana…” Não há nada, só as montanhas. E depois era uma escola de desportiva muita pequenina, ali um bordillo ao lado da estrada. Isto em Marrocos, ao pé de Chefchaouen. E nunca me esqueço disto, houve uma noite em que eu começo a olhar para uns paredões grandes, de para aí 200 ou 300 metros de altura, e começo a ver uns frontais no meio da parede, e pergunto-lhes “o que é que são aquelas luzes?”, e eles “É alguém que esteve a escalar ali nas vias longas e deve estar a rapelar”. Esta lembrança é muito representativa para mim.
Como é que foi o teu percurso a partir desse momento?
Foi muito disruptivo [risos].
Até chegares aqui.
Até chegar aqui, até encontrar a minha vocação, que acho que finalmente encontrei. Não te vou dizer que daqui a dez anos vou fazer exatamente o mesmo que estou a fazer hoje, mas é a primeira vez que eu sinto que isto me está a fazer sentido.
Fala um pouco desse percurso.
Nessa altura, eu estava em Ceuta a fazer o estágio de final do curso em Turismo, a trabalhar no Posto de Turismo de Ceuta, e não tinha um plano. A pessoa com quem estava na altura também estava em estágio, e ela, sim, tinha planos concretos, que era ir para o Porto fazer o mestrado. E eu, que confio um bocado no destino, pensei “também vou e hei de encontrar uma solução”. Fiz um estágio profissional na área dela, que é animação socioeducativa, e estive a trabalhar como animador para uma empresa da Lousã. Esse estágio durou um ano e no fim eu tinha de arranjar uma solução, e entrei na aviação como comissário de bordo. Que não tem nada a ver.
Viagens, ainda assim.
Isso foi uma coisa que sempre esteve presente. Eu nunca tive uma base durante muito tempo. Desde os 18 anos que andei a saltar. Como comissário de bordo estive na Lituânia a viver, durante quase um ano. Tinha passado quase dois anos do meu estágio e ainda tinha na minha cabeça aquela experiência de Marrocos. E descubro que na Lituânia - em Kaunas, onde estava a viver - havia um rocódromo. Era um rocódromo mesmo deplorável, super underground, onde comecei a fazer umas sessões de boulder. Entretanto, em 2016, fui transferido da Lituânia para Santiago de Compostela, onde tinha um rocódromo acabado de abrir. Aí sim, comecei efetivamente a praticar escalada. Após dois anos, mudei de companhia, e estive no Porto. E aí já tinha presente que não era o que queria fazer para a vida toda. O Tiago Torrinha não pertencia dentro de uma cápsula pressurizada. O Tiago Torrinha pertence à montanha. Não tinha a certeza do que ia fazer na vida, mas imaginei que ia ficar aqui alguns anos. Portanto, despedi-me da outra companhia e entrei nesta, para me dizerem que ia ser mandado embora na temporada seguinte. Tive que arranjar uma solução. Candidatei-me a uma terceira companhia aérea e consegui ir para Lisboa. Até chegar a Lisboa, sempre tive esta sensação de ser lobo solitário.
Porquê?
Porque tinha uma visão da escalada muito própria, muito única. À malta só lhe interessava ir para o rocódromo e fazer as azuis, e as amarelas… E eu ainda continuava com aquela minha ideia romântica de meter a mochila às costas, a tenda, a comida, o gás, o fogão, a corda, o arnês… Vinte quilos às costas, montar acampamento, usufruires daquele pôr-do-sol incrível, preparares as coisas para o dia a seguir, saíres de noite com o frontal, aproximação à parede, escalar. Então, durante muitos anos vivi este ideal sem nunca ter encontrado ninguém sequer que vislumbrasse isso como uma possibilidade. Era tudo malta do bloco e da desportiva do grau. Só lhes interessava tentar as vias 40 vezes até elas saírem, até terem a via. E isso é uma coisa que a mim, na altura, me puxava um bocado para trás, me desiludia. Que é do género “a escalada é isso? É só para a posse?”. Eu nunca escalei para a posse. Escalava para mim. É curioso, até muito recentemente, o meu grau máximo era à vista. Nunca me preocupei em dar dez pegues num dia. Queria desenvolver as minhas competências de escalar à vista, porque como tinha no meu ideal a questão de escalar na montanha, não podes ensaiar uma via que está numa parede de 400 metros.
Mas em Lisboa deixaste de te sentir só.
Em Lisboa conheci uma malta que são capazes de ser os pioneiros da escalada livre em Portugal. Uma amiga, que tinha conhecido no encontro de escalada da Serra d’Arga, apresentou-me ao João Gaspar, e eu fui escalar com ele para a Serra da Arrábida. Foi surreal porque em meia hora de conversa ficamos tipo lapas. E percebi que ele era todo despreconceituoso no que diz respeito à escalada. A escalada é um meio de locomoção na vertical, independentemente se é bloco, desportiva, clássica, mista, se é com corda, se é sem corda… É escalada. É o movimento. E rapidamente criamos uma ligação muito forte.
Depois daquela experiência em 2013, encontras finalmente alguém que fala a mesma língua.
É exatamente isso, falar o mesmo idioma que tu. E tu tiveste muitos pares até então, muita gente com quem escalaste, mas sempre te sentiste um lobo solitário, e de repente aparece aqui uma malta. E os amigos dele [do João Gaspar], o Fernando Pereira, o Cristóvão, o Paulo Roxo… Foi o grupo com quem me comecei a dar. O João também estava a sentir que a malta com que ele escalava já não tinha tanto aquele ímpeto de viver aventura na escalada, escalada de aventura, de ir para terreno desconhecido, para terreno de gestão de risco. Acaba por ser quase um nicho. Aprendi da experiência dele, e ele também aproveitou o meu power, e vivemos aventuras incríveis.
Aquele dia foi importante para o rumo da tua vida?
Sem dúvida, falo neste episódio muitas vezes. Foi o ponto de viragem.
E o que é que mudou?
O que mudou é que afinal não estava maluco [risos]. Não estava a viver um sonho, aquilo existia. Afinal, não eram só os melhores do mundo que tu segues nas revistas. Eu seguia essa malta toda, os freaks da escalada, e pensava que só esses freaks, e só os melhores do mundo, é que podiam vivenciar aquilo. De repente, dou por mim com friends [pontos de segurança amovíveis] pendurados no arnês, ainda nem sabia o que estava a fazer. Mas com alguém do meu lado a dar-me apoio nesse crescimento. E houve várias coincidências que aconteceram. Nesse ano, em 2018, tive a minha primeira viagem de escalada, a Yosemite. E nessa altura houve o Meadinha Fest, e chamam-lhe [à Zona de Escalada da Meadinha] o Yosemite português. Nas datas em que calhou o Meadinha Fest eu estava em Yosemite. Eu costumo dizer, na brincadeira, que fui para Yosemite treinar para escalar na Meadinha.
(Fotografia: DR)
Como é que surge essa oportunidade?
Foi daquelas casualidades… Sabes quando sentes que estás na linha invisível? The invisible path. Parece que a vida te dá sinais, e se tu estiveres atento, eles fazem sentido. Na altura, eu estava na terceira companhia aérea, ia começar a fazer voos transatlânticos, e tinha que fazer o visto para entrar nos E.U.A. Houve um atraso num voo e antes de um embarque, eu estava dentro do avião à espera dos passageiros. E como estava com aquele tempo morto, fui ver o site da UIAA (International Climbing and Mountaineering Federation). Nunca tinha entrado. Estive a ver, mas não tive grande interesse e passei para outra. No dia seguinte, estou no carro, à espera que a Loja de Cidadão abra para tratar do passaporte e aparece-me logo uma notícia da UIAA sobre um encontro internacional de escaladores, em Yosemite, e as datas coincidiam exatamente com as minhas férias. Eu estava ali para tratar do meu visto para os E.U.A., e parece que tudo estava a confluir. Candidatei-me e fui selecionado. E eu que nunca tinha posto um friend na vida, dou por mim a ser aceite num encontro internacional onde iam estar escaladores de todo o mundo, com todos os backgrounds possíveis. Foi uma experiência incrível.
E como é que foi?
Escalamos todos os dias, de manhã à noite. Íamos a pé para as zonas de escalada, com as mochilas, a corda, os friends. Começamos a perceber quem é que estava no nosso nível e depois juntavam-se duas ou três cordadas para irem para um setor diferente, e um escalava numa via, outro noutra via. Yosemite é um bocado um parque de diversões da escalada, há de tudo, não há só dureza como a Dawn Wall. Naquela viagem eu já escalava 7A à vista, mas eu baixei para um quinto grau. A meio virei-me para o meu colega e disse “vem cá tu porque a minha mente já não me deixa”. O granito lá não é rugoso, é liso, não tens aquele grip do granito da Serra da Estrela ou da Meadinha que deixa as mãos esfoladas. É um granito polidinho, e aquilo não dá muita confiança quando estás a pisar. E a parte mental sempre foi muito importante.
Fazes escalada clássica em lugares inóspitos. A que se deve esta atração pelo extremo?
Temos que fragmentar esta pergunta. Eu acho que é importante descortinar o que é escalada clássica. Para mim, a clássica permite-me não estar limitado a uma plaquete, não significando que a clássica seja mais ou menos arriscada. Eu já estive em situações muito mais arriscadas em desportiva. Se eu tiver uma fissura super perfeitinha, quase que atiro o friend e ele fica lá seguro. Ou quando eu estou a escalar em cima de uma plaquete A2 [liga metálica] ao lado do mar, como já me aconteceu no verão passado, com esse meu colega, ali na Arrábida. Tem lá umas plaquetes que eu sei que a probabilidade de aquilo aguentar se eu cair ali em cima é um bocado ao acaso. Existem casos que estão a falhar ao pé do mar. Às vezes, elas não têm ferrugem, mas por dentro estão completamente podres. Isto leva-me a crer que a clássica não tem necessariamente que ser mais arriscada. Requer, sim, algum conhecimento prévio - por isso é que existem cursos e formadores, e aqui também defendo a minha área profissional - que é para transmitir essas premissas, essa segurança. Existe uma forma de como colocar um friend e tu saberes que ele está bem colocado, e que podes confiar nele.
Apesar de me colocar em situações aparentemente arriscadas, sou uma pessoa muito conservadora. Não me exponho ao risco gratuitamente, no entanto exponho-me a riscos. No outro dia tive uma queda de 15 metros. Felizmente, estou aqui, e foi um microfriend que me aguentou. Foi um risco que eu assumi. Estava numa parede completamente decomposta, mas não bati em nenhum patamar, em nenhum calhau saliente e caí no vazio. Exponho-me a riscos mas gosto de os calcular, e tendo a ter uma abordagem mais conservadora do que arriscar demasiado.
(Fotografia: DR)
Quando é que decides tornar-te guia de trekking?
Em 2020, plena pandemia. Eu já tinha a certeza que não pretendia que a minha vida fosse o tempo todo fechado num avião. Em 2020, a aviação parou e eu tive muito tempo para pensar. Estava com contrato temporário que ia terminar, e com as coisas como estavam, não iria ser renovado. Então, passados alguns dias, eu já tinha todas as possibilidades e mais algumas para me tornar guia de montanha. Cheguei a estudar a possibilidade de ir para o Peru. Mas percebi que em Espanha era mais fácil seguir este percurso.
A decisão foi rápida.
Porque eu já tinha pensado nisso antes. Porque eu gostava mesmo de ensinar as pessoas. Coisas tão simples como fazer o nó de oito, esse processo de aprendizagem… Desconstruir o processo em ti e transmitir esse processo ao outro é algo que me motiva. Levar as outras pessoas a sítios onde me sinto confortável. Trazê-las comigo. E eu sentia-me mesmo feliz ao fazê-lo, de forma informal. Fazia isso com amigos, com amigos dos amigos. E de repente dou por mim a pensar que era esse o caminho, e arrisquei. Lancei-me ao vazio. A minha família dizia que eu estava louco. Perguntavam-me “mas o que é ser guia de montanha?” ou “há saída em Portugal?”. Mas, apesar de tudo, apoiaram-me.
E foste para Espanha.
Fui para Espanha, e tirei vários cursos. Tens de tirar o curso de iniciação à montanha. Só isso é que permite aceder aos níveis seguintes de cada disciplina. Tirei o nível 2 de escalada e o nível 2 de média montanha, para tirar a certificação UIMLA (Union of International Mountain Leader Associations), que é a certificação internacional. No final de 2020 comecei o meu percurso formativo. Em 2021 fiz o de guia instrutor de escalada, e em 2022 já tinha competências. Aliás, informalmente, eu já tinha competências para guiar. Mas mais do que uma educação formal, é a tua experiência. No final de 2021 entro no mercado de trabalho, e começo a guiar. Foi-me proposta a possibilidade de guiar, como guia de trekking. Atualmente, sou um guia certificado de montanha. Além disso, também tenho sido formador em atividades de montanhas relacionados com trekkings.
Sempre estiveste muito próximo da Natureza, tanto momentos de lazer como em contexto profissional. Contudo, em Portugal, não há grande cultura de ar livre. Que motivos vês para essa desconexão?
Existem dois grandes fatores, na minha ótica, para que isto aconteça. Não temos cultura de montanha porque não temos montanhas. Temos a Serra da Estrela e a Serra do Gerês que são cheirinhos de montanha. Mas não temos reais montanhas, mesmo as zonas de escalada que temos em Portugal - e atenção, temos escalada de muita qualidade, especialmente na zona de Lisboa. A Meadinha é um exemplar brutal do que é um estilo de escalada muito concreto. Não temos grandes exemplos de montanhas que realmente apele a que tu tenhas uma comunidade, como tens, por exemplo, em Espanha. Em Espanha temos bastantes cadeias de montanhas onde se pratica montanhismo e alpinismo. Portugal não tem. Aqui apanhas neve uns dois dias por ano na Serra da Estrela. Neste momento, tenho colegas espanhóis que estão a escalar gelo em Espanha. Nós aqui temos um ou dois dias por ano em que podes escalar gelo. Podes vir a ter cinco dias em que podes escalar uma cascata de gelo na Serra da Estrela. Portanto, eu acho que isso é um dos fatores que contribui enormemente para haver falta de cultura de montanha.
Existe um segundo fator que se prende com a nossa mentalidade. Apesar de tudo, acho que ainda estamos a viver alguns vícios muito urbanos, e isso está associado ao primeiro fator. Não existe educação ambiental, de Natureza, porque também não temos essa cultura de montanha que os outros países têm. Então, existe uma desconexão, um desrespeito. Não estou a dizer isto do lado pejorativo, falo do ponto de vista do desconhecimento. Não temos sistemas que proporcionem uma educação ambiental correta. Não é a meter ecopontos na rua que tu vais fazer isso, nem com estacionamentos e passadiços. É uma coisa que à partida é negativa, mas traz aqui uma oportunidade muito grande, do ponto de vista educativo. E eu sinto que tenho um papel fundamental. Mais do que fazer o meu ganha-pão deste tipo de atividade, estou consciente do impacto que tenho na vida das pessoas que estão a entrar e a viver este mundo do outdoor. E essa responsabilidade carrego-a em cima de mim, e com muito gosto. Viveres outdoor, viveres a Natureza, e viveres a montanha e poderes transmitir esse sentimento de uma forma eticamente correta ao outro… é aí que se gera a oportunidade. E é uma comunidade que está a crescer, acho que começa a haver procura. Estou a falar do ponto de vista do trabalho, ou seja, é o mercado com o qual eu pretendo trabalhar, e é um mercado sobre o qual eu sinto que também tenho responsabilidade. Sinto que estou a contribuir para fazer algo crescer.
Vais liderar uma viagem na Patagónia e depois vais ficar por lá seis semanas para tentar uma ascensão. Porquê tanto tempo?
Na Patagónia as coisas são muito complexas. Para começar, a própria localização geográfica. Apesar de ir no verão, aquilo não deixa de ser varrido por tempestades, porque há ali umas depressões que são formadas no Pacífico e entram Patagónia adentro, e descarregam essas tempestades todas na zona do Fitz Roy. Ora, quando pensas numa janela de bom tempo pensas em sol, sem vento, não está demasiado calor nem frio. Isso é espetacular. Efetivamente, isso é bom tempo, no entanto não significa que corras menos riscos por isso, porque existem depois outros riscos associados ao bom tempo que têm de ser geridos, e que vão para além da escalada. E entramos para a parte da montanha, falo de desprendimentos de rocha, por exemplo. O tempo frio é muito mais estável do ponto de vista da estrutura das próprias paredes. E depois há as avalanches. Tempo quente em cima de neve. Estás em cima de um glaciar que tem neve, está quente, a neve fica húmida, e há mais propensão a haver avalanches. Portanto, aumentam esses riscos. O bom tempo acaba por significar outros riscos. Há ali um sweet spot, entre o mau e o bom tempo, para que possamos garantir uma atividade o mais segura possível. Efetivamente, não vamos subir à montanha se estiverem ventos de 120 km/hora, e se estiver sensação térmica de -20º C. Não é sustentável para as missões que temos. Vamos estar na montanha com bom tempo, sabendo de antemão que existem esses riscos que têm de ser geridos, seja onde tu estás, a que horas é que tu estás. Se tiveres que pernoitar na montanha para garantir uma descida de rapel mais segura durante a noite, se calhar vais ter que o fazer.
É também isto que te motiva a ir?
É. É isto que me move na escalada. E por isso é que durante muito tempo me senti um bocado lobo solitário, e finalmente me encontrei porque comecei a vivenciar essas aventuras. Existe toda uma logística que é preparada para uma determinada missão. A parte de preparação, da produção daquela viagem… Motiva-me operar no terreno, na ótica de gestão de risco. Isso é todo um capítulo. E depois a recompensa é muito maior, vai para além da escalada. Vai por toda a jornada. A escalada é quase um pretexto para viver tudo isto.
(Fotografia: DR)
E tens uma história da tua primeira viagem à Patagónia, que eu já ouvi.
É curiosa toda a história da Patagónia, porque eu fui lá pela primeira vez na tal expedição de tentativa de travessia do campo de gelo. Já que ia para lá, fui mais cedo, sozinho, dez dias antes da expedição começar, na tentativa de encontrar algum escalador. Fui às cegas, com 60 quilos de bagagem, com o material todo para a expedição (crampons, piolets, raquete, tenda, comida para onze dias) e o material de escalada, na esperança de encontrar algum escalador com quem me pudesse juntar. Aterro em Buenos Aires e no transfer de um aeroporto para outro reparo num gajo que se levanta. Era alto, europeu, nórdico, pela pinta. Olho para o chapéu “Black Diamond”, e penso “este gajo é escalador, e deve ir para El Chaltén”. Chegamos ao aeroporto e nisto, saco as minhas malas e cruzo-me com eles depois de entrar no terminal. Dois E.T. perdidos no planeta terra. Eram dois alemães, não percebiam o que estava nas placas, estava tudo em espanhol. E eu assim que os vejo, “Chaltén?”, e eles “Chaltén!”, como se fossemos logo grandes amigos, sem nunca termos trocado nenhuma palavra. Fizemos o check-in ao mesmo tempo, e eles iam num voo a seguir ao meu para Calafate, mas tivemos ali três horas de tempo morto a beber cerveja. E já estávamos com os guias de Chaltén abertos, a mostrarmos os nossos projetos. Eles iam para um projeto completamente diferente do meu, que era o Cerro Torre, que é tipo a epítome do alpinista. E eu andava a sonhar com um cume do Fitz Roy, só que nós temos um guia [Patagonia Vertical], que é do Rolando Garibotti, e aquilo está muito bem explicado - os acessos, como é que chegas aos acampamentos, as vias - mas não deslinda demasiada informação sobre as vias, para dar aquele grau de incerteza. Discutimos o que íamos fazer, e eles tinham um perfil muito mais alpino, e eu um perfil muito mais de rocha. Fomos para Chaltén e na primeira janela de bom tempo eu saí para a montanha com um alemão que conheci lá, e eles saíram os dois para tentarem uma agulha ao lado do Cerro Torre, de ambientação. Mas acabei por não sentir muito boa dinâmica com o alemão que conheci. Encontramo-nos quatro dias depois para jantar e eles “Tiago, nós levamos na boca, levamos porrada forte e feio. Só a aproximação é uma atividade”, e eu disse que senti exatamente a mesma coisa. Na descrição é tudo muito superficial. Cruzar um rio, é do género, tu escorregas, game over. É esta a realidade. Não há aproximação só, e depois tens que dormir, tens que te encordar para a montanha, atravessar um glaciar, chegar à base da parede, atravessar as rimayas, que são crevasses, para alcançar a base da parede e só depois é que escalas. E para escalar ainda tens que descer a montanha, que é quando acontecem a maior parte dos acidentes. E chegas a Chaltén três ou quatro dias depois completamente exausto. E a Patagónia mandou-te assim um chapadão. Foi uma aprendizagem grande para ambos, e eles têm a escola dos Alpes toda, têm muita experiência. E então, eles baixaram a fasquia e eu mantive a minha, que era tentar as coisas mais fáceis. E juntos fomos fazer a ascensão à Guillaumet. O Cerro Elétrico foi depois da expedição do campo de gelo. Basicamente, o que eu fiz foi tentar aproveitar ao máximo, cheguei a fazer uma ascensão ao Cerro Madsen em solitário, sem cordas, sem nada, levei só os crampons na mochila. Tinha a montanha só para mim.
O que te encanta na Patagónia?
As paisagens são arrebatadoras, únicas. Parece que estás dentro de um quadro, de uma pintura. Depois aquilo tem uma energia única, é uma coisa que tu não consegues palpar. E continua a ser um sítio onde a Natureza ainda está muito intocada. Obviamente que aqueles trekkings mais acessíveis estão muito batidos e começa a haver muita gente, mas são pequenos redutos.
Quais são as tuas ambições?
[Risos] Eu tenho um objetivo… Eu não sou colecionista. Voltando ao início da conversa, eu não quero ser detentor de nada. Há quem diga “eu tenho aquela via”, isso para mim não faz sentido. Tu és um escalador competente ou não és? É um bocado a minha abordagem. Mas está aqui uma sementinha na minha cabeça, e gostava de pisar todas as agulhas principais do Fitz Roy. É um sítio demasiado especial e bonito. E pisar naquelas agulhas… Eu tive essa experiência na Guillaumet, e é um sítio único, sentes-te mesmo especial, e sentes que estás num sítio especial.
Podes conhecer mais sobre o Tiago em tiagotorrinha.com