Marco Cunha: ‘As vias são de quem as escala, e não de quem as equipa’



Marco Cunha nasceu na freguesia de Cunha, em Braga, e desde cedo manifestou uma ligação profunda com a natureza e as montanhas. Ainda em miúdo, por volta dos 4 ou 5 anos, fez uma uma viagem aos Pirinéus para visitar familiares que o marcou muitíssimo, tendo ficado fascinado pelas montanhas. Em Portugal, recorda-se de trepar os calhaus nos montes das redondezas, desenvolvendo um gosto pelo desafio e consequentemente pela escalada.
(Rei do Tik Tok - Vila Flor)
Foi em Gondifelos e na Fraga do Teto em Valongo, durante o seu percurso académico no curso de Desporto, que teve os primeiros contactos mais sérios com a escalada. Nesta fase, desafiava o pai a acompanhá-lo ao Monte Galiñeiro, na Galiza, para lhe dar segurança. Na universidade estudou com Filipe Cardinal [Cardi], figura incontornável do panorama nacional, que mais tarde viria a ser uma influência para Marco Cunha no processo de equipar novas vias.
Descobrir Vale de Poios foi o ponto de viragem da sua escalada, como o próprio admite. Ainda que hoje tenha um histórico de 8a em escalada desportiva e bloco, e 7b+ em clássica, Marco recorda que, quando começou a escalar em Poios, o seu objetivo era encadear 7a. Inicialmente, a motivação era apenas chegar ao topo, mesmo com paragens intermédias. Era nessa altura que escaladores como Francisco Ataíde, Martinho Fróis e Filipe Costa e Silva se destacavam no nível máximo escalado em Portugal, mas foi com o surgimento de José Abreu e Júlio Braga que se inspirou e estes são ainda hoje duas das suas grandes referências.
Marco assume que até este ponto nunca tinha tido motivação para equipar. Só a ganhou depois de ser contagiado pelo entusiasmo do Cardi e outros elementos de um grupo que ficou conhecido como a Irmandade da Topalhada.
(Peña Santa)
Foi quando começou a dar aulas em Miranda do Douro, por volta de 2004, que descobriu a Serra dos Passos, onde Filipe Cardinal e José Abreu deram lugar à segunda vaga de novas aberturas na falésia transmontana. Durante este período, experimentou vias de largos pela primeira vez numa pequena via de dois largos, junto à Ponte da Misarela, em Vieira do Minho, acompanhado por Nelson Cunha. Conta que a sua primeira visita à Meadinha deu-se logo a seguir, embora agora acompanhado por Alfredo Azevedo, integrando a cordada original. O objetivo seria a clássica “Via do S”, no entanto, uma chuva torrencial obrigou-os a abandonar no terceiro e penúltimo largo, provando que as previsões meteorológicas do teletexto tinham menos fiabilidade que um ponto de inox A2 junto ao mar.
Nos anos seguintes, até 2009, Marco trabalhou no Alentejo, onde, ao lado de Bruno Gaspar e do pessoal do “Abismo Branco”, descobriram e equiparam a Escusa. Primeiro equiparam a parede extraprumada, e posteriormente clássicos como a “Rastafari” na parede lateral. Durante esse período, Marco Cunha, escalava também na Serra da Estrela com Bruno Gaspar, em companhia de figuras como Nuno “Larau”, Paulo Roxo e a sua cordada Miguel Grillo, num ambiente que descreve como "classiqueiro" puro.
(Abertura da Cinderela Man com Sesa e Zé Abreu)
Mais tarde, ao regressar ao Norte, tornou-se um frequentador assíduo da Meadinha, onde escalou algumas vias em solitário, incluindo a “Via do S”, “Caravela Roxa”, que anteriormente tinha aberto com Sérgio Sá (Sesa) e Natália Pereira, e “Autopista”. Embora afirme que na altura o fez por falta de cordada, confessa que o processo se torna viciante, obrigando-o a estabelecer limites.
Fruto da boa relação que Marco manteve com a comunidade galega que frequentava Poios, criaram-se novas amizades do outro lado da fronteira e hoje, juntos, dinamizam e mantêm zonas como a Meadinha e falésias na Galiza, como Faro de Budiño, embora seja em Portugal que o seu trabalho tenha mais impacto. Defende que as alterações na proteção de vias devem ser feitas gradualmente, permitindo que a comunidade reflita, se adapte e dê feedback, respeitando a premissa de que "as vias são de quem as escala, e não de quem as equipa". Afirma ainda: “A comunidade local escaladora é soberana sobre as decisões a tomar sobre reequipamento ou regulamento não documentado de uma zona. Ou seja, se em determinado momento esses escaladores que frequentam a zona, são reconhecidos como fazendo parte dessa comunidade, têm legitimidade de executar determinadas alterações ou criarem determinadas regras e assumir também o seu posicionamento. Nas vias abertas de baixo, na minha opinião, este assunto assume outras sensibilidades e questões éticas a ter em conta.”
(Serra de Arga)
Argumenta que a forma mais legítima para abrir em parede é “de baixo”, porque qualquer exposição em caso de queda, será feita nas mesmas ou piores condições que os repetidores. De qualquer forma pensa que cada um deve decidir o estilo de como vai abrir uma via, mas que deve assumi-lo de forma clara. Em forma de conclusão refere que “quando se trata de desportiva entendo que o mais normal e comum é um equipamento desde cima sendo que na minha opinião não se trata de uma abertura mas de um equipamento.”
Marco Cunha foi também uma figura presente no movimento Nortebouldering, recordando com carinho as "quartas-feiras de fotos" e o perfecionismo e entusiasmo de Sérgio Martins. Recusa a ideia de que essa tenha sido a "era dourada" do bloco no Norte, citando uma frase de Bruno Gaspar: "A era dourada é aquela em que vives". Reconhece que havia um núcleo dinâmico que impulsionava o boulder na região, que apesar de nunca ter defendido uma cultura de secretismo, o facto de ser bastante pequeno e não haver uma comunidade muito desenvolvida no bloco fez com que a partilha de informação ficasse limitada às poucas pessoas na órbita do bloco nortenho. No entanto certas práticas, como o aparecimento de talhados e pouco respeito pelos espaços de escalada, podem ter levado a uma menor abertura na partilha de informação. Acredita que ainda há muito potencial por explorar fora das zonas conhecidas de boulder.
Com 25 anos de experiência, Marco Cunha reconhece que a motivação para escalar é cíclica, e que hoje não sai tantas vezes como antes. No entanto, a sua contribuição para a escalada nacional é inegável, predominantemente no norte, centro e Alentejo, tendo um legado nas diversas disciplinas, com inúmeras aberturas de vias e blocos.
(Viagem ao fundo do Poço)
Agradecimentos:
A Marco Cunha, pela informação e conteúdo fotográfico dispensado para este artigo.